Estava na hora de escrever algo inédito, mas, antes de abrir um novo arquivo no Word, eu resolvi apertar o play em um vídeo que alguém havia compartilhado no Facebook.

Na tela do meu computador, eu vi um faxineiro (com expressão de súplica) ser assassinado com um tiro na cabeça. O bandido, sem hesitar, acabou com a vida de um cara que limpava paredes e que, em nenhum momento, tentou reagir. O faxineiro foi trabalhar e simplesmente não voltou. E eu, após ver aquela cena, senti o meu coração enegrecer e bombear veneno, do mais mortífero, ao meu cérebro. Naquele instante, o ódio eclipsou a minha paz interior. Senti-me invadido pelo desejo mais cruel de vingança e por vontades que, se executadas, também me tornariam um monstro. Eu senti um gosto amargo na boca – aroma que, por alguns minutos, quase me fez perder a fé no mundo. Ao assistir ao vídeo, exatamente como o céu que eu conseguia observar através da janela do meu quarto, eu fiquei completamente cinza e nublado. Graças à morte de um inocente, uma tempestade havia começado em mim. Um maremoto de sangue escuro partiu do meu coração em direção aos meus punhos que, rapidamente, fecharam-se. Eu me senti prestes a explodir. Porém, antes de terminar em ruínas e de me tornar um coletivo de cacos, eu precisava escrever algo. E, após contar até mil, vi-me diante da seguinte encruzilhada: cuspir, no papel, toda a minha violência, revolta e sangue pisado, ou, para tentar livrar os meus leitores daquilo que asfixia, mesmo que apenas por alguns minutos, escrever algo doce? Naquele momento, o mais fácil, com certeza, era preencher o espaço branco do Word com palavras ácidas, corrosivas e capazes de perfurar jugulares. Entretanto, a gota de esperança mais nobre que havia em meu interior, mesmo que minúscula quando comparada à vontade de também me tornar um monstro, imperou e, felizmente, ordenou: “Ricardo, o universo já está demasiadamente cheio de ódio e de coisas que não passam em nossas gargantas, por isso, faça algo açucarado.

Escreva, já, não para iludir ou para anestesiar, mas para mostrar que, mesmo em meio a tiros que vivem tirando a vida de inocentes, existem orquídeas e coisas que, de tão maravilhosas, criam finas películas de alegria em nossos olhos. Seja, por favor, ao menos no próximo texto, a colher que tirará o açúcar esquecido no fundo de muitos corações.” E assim, eu reuni, em poucas linhas, as muitas memórias que me motivam, todos os dias, a vencer a dor que sinto quando percebo que vivo em meio a balas achadas em corpos perdidos e a esperanças perdidas antes mesmo dos primeiros achados da infância:

“Ei, você que agora sente o ar faltar, por favor, respire fundo. Mais uma vez. Mais fundo. Respire por mim. Respire por você. Acha pouco? Então respire fundo pelo namorado que, todas as vezes que pede um café, por amor e por nunca negar a mínima chance de fazer a namorada feliz, dá o acompanhamento a ela. Respire fundo pelo gato que, depois de anos sendo maltratado, graças a uma pessoa boa, agora pesa muitos quilos a mais, recebe cafuné ilimitado e dorme, todas as noites, em uma almofada macia. Respire fundo pela criança que, após tomar chuva pela primeira vez, sorri maravilhada com a simplicidade que cai do céu. Respire fundo pelos tantos bolos de cenoura feitos por avós memoráveis que, neste exato momento, estão no forno (os bolos, não as avós). Respire fundo pelo amor à primeira vista (aquele que nos faz dar com a cara no poste) e também pelo amor à milésima vista (aquele que cresce a cada dia de convivência). Respire fundo pelo amigo que, sem saber como agir, tenta fazer piada para evaporar o seu choro. Respire fundo pelos olhos deliciosamente arregalados das mulheres que recebem flores, chocolates e beijos na pontinha do nariz. Respire fundo pela criança que, ansiosa para pular sobre a cama, não para de perguntar se está chegando ao hotel. Respire fundo pela inevitável insistência das mães que não nos deixam, nem depois de adultos, esquecer a blusa em casa. Respire fundo pelas curvas naturais da Scarlett Johansson. Respire fundo pelo café que já está a cheirar e que logo estará em sua caneca preferida. Respire fundo por cada abraço que, acolhedoramente, insiste em não soltar você. Respire fundo por aquele que, como se fosse a maior das estrelas do rock, agora canta em um karaokê qualquer, mesmo sem plateia. Respire fundo pelas mãos que, mesmo cansadas, continuam a massagear pés e a arrepiar espinhas.

Respire fundo pelos beijos apressados que logo viram nudez e pelo riso envergonhado que damos quando os nossos dentes, sem querer, colidem com os dentes de quem nos beija. Respire fundo pelas vezes que comeu, sem nenhum recheio, massa de panqueca. Respire fundo pelas pizzas frias e amanhecidas que, estranhamente, parecem mais gostosas do que qualquer pizza quente e recém-feita. Respire fundo pela camiseta (velha e desbotada) que você, de tanto que gosta, faz questão de usar em todo sábado. Respire fundo pelo casal de velhinhos que desafiou a eterna insatisfação da nossa época e, desde 1978, ainda não enjoou de dormir de conchinha. Respire fundo pela cicatriz que, como uma lembrança tatuada em sua pele, faz com que você se lembre do esplêndido passado no interior e de uma linda jabuticabeira. Respire fundo pelo caipirinha inigualável do seu tio. Respire fundo pela sua barriguinha de chope que, ao contrário do que dizem por aí, é apenas reflexo – e motivo de orgulho – das maravilhosas experiências que você já viveu. Respire fundo pelos poemas do Mario Quintana e pelas frases da Clarice Lispector que, em muitos casos, nem dela são. Respire fundo pelas estrelas que ainda estão lá, escondidas atrás da poluição. Respire fundo pela Coca-Cola bem gelada dentro de uma garrafa de vidro e pelas cervejas, mais geladas ainda, servidas em copos americanos. Respire fundo pelos dias em que você, desprovido de culpa, faltou à academia. Respire fundo pelo tesão que parece bem maior quando estamos no mar, em dias de sol. Respire fundo pelas tantas séries boas que estão passando na tevê. Respire fundo pela viagem que fará no final do ano. Respire fundo pela cebola do Outback. Respire fundo pelo beijo que bate na trave e enche de vontade. Respire fundo pelos riffs dos Rolling Stones e pelos solos do Slash. Respire fundo pelo sol que logo nascerá e pela lua amarela que nos obriga, sempre que surge, a olhar para cima. Respire fundo pela gema que estoura e tinge o miolo do pão francês. Respire fundo por ter conseguido tirar a foto no exato momento do pulo. Respire fundo, pois o mundo, acredite se quiser, está abarrotado de coisas incríveis.

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